Blog do Prof. Dr. Paulo Cardim nº 606, 06 de novembro de 2023

Governando pelo retrovisor

A Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), criou, além da avaliação institucional e avaliação de cursos de graduação,  avaliação dos discentes pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), realizado trienalmente, segundo a área de conhecimento.

Esse tipo de exame não constava da proposta original, enviada ao Congresso Nacional pelo presidente Lula, mediante a MPv nº 147, de 2013. Essa MPv foi elaborada sob a governança do ministro Cristovam Buarque e a liderança de um dos melhores especialistas em avaliação da educação superior, José Dias Sobrinho, da Universidade de Campinas (Unicamp).

Mas o Congresso Nacional, sob a pressão da grande mídia, que tinha se acostumado a criar rankings com o anterior Exame Nacional de Cursos, instituído sobre o governo anterior, ignorante em matéria de educação, deliberou incluir o Enade, com a seguinte redação:

“Art. 5º A avaliação do desempenho dos estudantes dos cursos de graduação será realizada mediante aplicação do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE.

  • 1º O ENADE aferirá o desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares do respectivo curso de graduação, suas habilidades para ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento e suas competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento.
  • 2º O ENADE será aplicado periodicamente, admitida a utilização de procedimentos amostrais, aos alunos de todos os cursos de graduação, ao final do primeiro e do último ano de curso.
  • 3º A periodicidade máxima de aplicação do ENADE aos estudantes de cada curso de graduação será trienal.
  • 4º A aplicação do ENADE será acompanhada de instrumento destinado a levantar o perfil dos estudantes, relevante para a compreensão de seus resultados.”

Os “conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares do respectivo curso de graduaçãoe o questionário destinado “a levantar o perfil dos estudantes” não são cumpridos rigorosamente. O aluno não tem nenhum comprometimento com o resultado de seu exame. Pode responder aleatoriamente algumas questões ou nenhuma e a sua diplomação ocorre normalmente. Os cursos superiores de tecnologia (CST), por exemplo, não têm DCNs fixadas pelo MEC. O Inep constrói uma espécie de DCNs para elaborar as provas do exame.

Mas o pior acontece com o questionário destinado a levantar o perfil dos estudantes”. Ele é transformado em uma avaliação dos estudantes em relação à IES e ao curso submetido ao Exame, sem qualquer direito ao contraditório e à defesa das IES. Trata-se de um crime administrativo previsto na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Essa lei torna obrigatório que a Administração Pública (Art. 2o) obedeça, “dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.

Nos processos administrativos (Parágrafo único) “serão observados, entre outros, os critérios de:  I – atuação conforme a lei e o Direito; […] IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; VII – indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão; VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados; IX – adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados; X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio; […] XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.” (gn)

Os princípios da legalidade, por exemplo, foram criminosamente descumpridos pela Nota Técnica do Inep que criou, à margem da Lei do Sinaes, “indicadores de qualidade” da educação superior – avaliação de cursos de graduação e avaliação institucional – e que foi sacramentado pelo então ministro da Educação, Fernando Haddad, pela Portaria Ministerial nº 40, de 2007, com efeito retroativo ao Enade de 2006, o Conceito Preliminar de Curso (CPC) e o Índice Geral de Cursos (IGC), este para avaliar as IES (???). Outro crime administrativo. Qualquer garoto do ensino médio ante a comparação do instrumento de avaliação de cursos e o instrumento de avaliação institucional, mesmo capengas, chegaria à conclusão de os tais “indicadores” não avaliam absolutamente nada.

Mas o ministro Haddad, enquanto na Educação, teve a genial ideia de propor ao presidente Lula, e este acolheu a ideia de enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei que criasse uma agência regulatória para a educação superior mantida pela livre iniciativa. O PL 4372/2012, instituía o Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior − Insaes. Esse projeto dormita até hoje nas gavetas da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. Foi sepultado porque seria decretar a falência do MEC. Não é somente a educação superior pública que vai mal. A educação básica pública está pior. Muito pior.

O atual ministro da Educação, com o olho no retrovisor, resolveu retomar a ideia do seu atual ministro da Fazenda, um sujeito eclético.

Talvez, se completasse o quadro de técnicos do Inep com os que estavam previstos para o Insaes o problema seria resolvido com mais seriedade. O Inep promove a avaliação da educação básica e superior, em nível de graduação.

Este é simplesmente um registro da crônica incapacidade técnica do Ministério da Educação, desde o governo FHC, ao conduzir a avaliação do sistema educacional brasileiro, da educação infantil à graduação.¨