Blog do Prof. Dr. Paulo Cardim nº 592, 31 de julho de 2023

Sinaes & qualidade: de volta ao passado

A Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o Sinaes, tem sido, ao longo de minha trajetória neste Centro Universitário, objeto de artigos, na medida em que foi sendo desvirtuada e, mesmo, por causa do Exame Nacional de Desempenho do Estudante, o Enade, um de seus dispositivos mais controversos, aplicado aos concluintes de cursos de graduação, anualmente.

O Inep vem de divulgar Sinopses Estatísticas do Enade referentes às edições de 2010 a 2021. A Sinopse reúne tabelas relativas à participação e ao desempenho de estudantes; número de participantes, de cursos e de instituições de educação superior (IES); além de um compilado das respostas ao Questionário do Estudante. Informa que o Exame, a avaliação de cursos de graduação e a avaliação institucional integram o Sinaes e esse três componentes avaliativos permitem aferir a qualidade dos cursos e das IES.

Mas complementa: “Os resultados do Enade, aliados às respostas do Questionário do Estudante, são insumos para o cálculo dos Indicadores de Qualidade da Educação Superior e subsidiam decisões de gestores educacionais, escolhas de estudantes, além de inúmeras políticas públicas de regulação, supervisão, financiamento e aperfeiçoamento da qualidade da educação superior”. Esses “indicadores de qualidade”, adotados desde 2007, em Nota Técnica do Inep e absorvidos pela “superportaria” 40/2007, contudo, desvirtuam o Sinaes, como temos afirmado ao longo dos anos, desde que foram implementados.

Esse cenário se repete há mais de quinze anos, sem que haja uma meta-avaliação crítica, consistente, isenta, autônoma, que leve o Congresso Nacional a se debruçar à real e verdadeira avaliação de qualidade da educação superior. Sei que estou fazendo “chover no molhado”, mas não me sinto em condições de aceitar e não usar do direito de contestar.

Mesmo sem concordar com os critérios adotados pelos “indicadores de qualidade” do Inep, a eles me submeto, como dirigente de uma IES. Todavia, tenho esperanças de que o bom senso, uma lei em desuso, acabará por prevalecer.

Sei que não estou sozinho nessas críticas. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma das principais agências de fomento ao crescimento econômico mundial, não poupa críticas ao modelo de avaliação do ensino superior brasileiro, em especial, o Enade, que apresenta “significativas fraquezas”, desde a concepção até a avaliação dos resultados.

A revista Ensino Superior, em edição de 2019, já apontava “falhas no Enade, no CPC e nos indicadores de referência”: “o Enade avalia o desempenho dos estudantes do ensino superior, mas são poucos os alunos que se preocupam com o seu resultado. Muitos fazem a prova sem comprometimento e até com descaso. Como não há padronização em seus itens, o nível de dificuldade da prova não é equivalente entre os anos, inviabilizando qualquer comparação. A partir dele, não dá para enxergar se os cursos estão melhorando ou piorando. Também não há uma indicação clara do que seja um resultado bom. Nessa perspectiva, considerando seus custos, será que o Enade está cumprindo seus objetivos? Seria o caso de descontinuá-lo?”.

Em 2014, o então conselheiro Gilberto Garcia, do Conselho Nacional de Educação (CNE), criticou duramente o Enade. Afirmava ele, em entrevista a periódico do DF, que o Enade “virou um peso comercial para algumas instituições e a nota vale mais do que a própria preparação para a vida profissional”. Chegou a dizer que o Enade promovia uma “avaliação perversa e punitiva” e concluía: “O Enade não é resultado do aluno, é fator de mercado”.

O professor Dias Sobrinho, o criador do Sinaes, em congresso internacional sobre avaliação da educação superior, realizado em Brasília, em 2008, no Hotel Nacional, lamentou que o Enade tivesse se transformado em avaliação de cursos de graduação e de IES, com “indicadores de qualidade” criados em 2007 pelo Inep.

Voltamos à avaliação de qualidade da educação superior. A questão posta é: o Exame Nacional de Desempenho do Estudante (Enade), instituído pela Lei do Sinaes, deve ser somente o que está na lei? Aferir“o desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares do respectivo curso de graduação, suas habilidades para ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento e suas competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento”. O seu uso e o do “instrumento destinado a levantar o perfil dos estudantes, relevante para a compreensão de seus resultados”, como insumo para os tais “indicadores de qualidade” pode continuar ao arrepio da Lei? Uma questão posta para o diálogo construtivo, que resulte em propostas viáveis para a avaliação de qualidade da educação superior.