Blog do Prof. Dr. Paulo Cardim nº 586, 19 de junho de 2023

Qualidade da educação superior versus regulação

A gestão universitária, ante uma legislação e regras inseguras e limitadoras da autonomia acadêmica, enfrenta entraves normativos e excesso de burocracia para atender às avaliações trimestrais de cursos de graduação e de recredenciamento institucional. Criam-se “indicadores de qualidade” à margem da Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o Sinaes. O objetivo é driblar a obrigatoriedade de avaliação in loco, tendo em vista incapacidade técnica e orçamentária por parte dos órgãos do Ministério da Educação. Seria mais racional separar a avaliação de desempenho do estudante (Enade) dos processos de avaliação institucional, que conduz ao Conceito Institucional (CI), numa escala de 1 a 5, e à avaliação de curso de graduação, que gera o Conceito de Curso (CC), com a mesma escala de valores.

A burocracia estatal nessa área, como em muitas outras, é lenta e pesada. As instituições de educação superior (IES) são levadas a produzir e entregar relatórios anuais, processos sucessivos de renovação de reconhecimento de cursos superiores e de recredenciamento institucional. Esses atos meramente burocráticos desviam talentos humanos da atividade-fim – a educação – para a elaboração permanente de relatórios e processos diversos. Acresce-se a essas ações que alimentam a burocracia estatal o tempo destinado às visitas anuais para avaliações diversas, assim como o preenchimento de formulários eletrônicos que alimentam esse complexo processo. Seguramente, esse não é o caminho mais adequado à avaliação de qualidade da educação superior.

O Enade, por exemplo, exigido pela Lei do Sinaes, é um exame que não produz o resultado desejado, uma vez que o estudante não tem nenhum comprometimento sobre o resultado obtido. Mas a IES é punida ante resultados negativos.

Por outro lado, o questionário do estudante que vai ao Enade, criado pelo Lei do Sinaes, tem por objetivo “levantar o perfil dos estudantes, relevante para a compreensão de seus resultados”. De “relevante para a compreensão de resultados” foi transformado, por uma simples Nota Técnica, em 2007, em instrumento de avaliação do estudante em relação à IES e ao curso, sem direito ao contraditório e a ampla defesa por parte das instituições, como reza a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal – “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.

Creio que as IES da livre iniciativa, que abrigam mais de 80% dos estudantes, merecem o destaque relativo à sua importância: na composição dos órgãos colegiados do MEC com atribuições definidas em lei, nas comissões destinadas ao estudo e definição das diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu e na avaliação da Lei do Sinaes. As comissões de Educação, na Câmara e no Senado, não dedicaram tempo para a avaliação da Lei do Sinaes em relação à qualidade do produto. Todas as ações desenvolvidas nesses vinte anos foram dedicadas aos atos de regulação e supervisão. Mera fiscalização.

Creio que a avaliação da Lei do Sinaes e sua aplicação, ao lado de “indicadores de qualidade” criados pelo Inep, deveria ser uma prioridade dos organismos do Congresso Nacional e do Poder Executivo com atribuições na avaliação de qualidade pelo Poder Público, em particular, como prevê o art. 209 da Constituição.

Penso, por outro ângulo, ser um equívoco tratar a qualidade da educação superior por meio de avaliações in loco ou “indicadores de qualidade” criados pelo Inep para os processos de regulação ou de supervisão do MEC sobre as IES que integram o sistema federal de ensino, as IES da livre iniciativa e as mantidas pela União. A qualidade da educação superior é mais abrangente.

Há, como se deduz das avaliações diversas da educação básica, uma carência de qualidade na nesse nível educacional, fato que se reflete na educação superior. Para a correção dos tropeços para uma educação básica de qualidade, três desafios são postos ao diálogo construtivo e relevante: aumento da proporção de alunos que alcançam proficiência mínima nas disciplinas básicas do PISA; melhoria da qualidade da educação ofertada nas escolas públicas; separar avaliação de qualidade da educação superior dos processos de regulação e supervisão; amplo sistema de financiamento dos estudos de pessoas de baixa renda ou abaixo da linha de miséria.

Os desafios são complexos e estão a exigir uma prioridade para o sistema de avaliação de qualidade da educação superior brasileira. Não há uma “receita de bolo” para essas ações. E nem depende apenas do Poder Executivo. Os três poderes devem atuar harmonicamente na identificação de valores, critérios de avaliação e atribuição de conceitos. O Poder Executivo é constitucionalmente indicado para as iniciativas nesse sentido. Todavia, amplo diálogo com os principais atores que atuam na educação superior, os gestores das IES particulares e públicas, deve ser praticado.